¹ Christiano Fragoso
² Leonardo Mendonça
Resumo: O presente artigo busca indicar o contexto de revalorização da vítima no processo penal brasileiro, bem como indicar que as vítimas de delito têm, hoje, uma notável quantidade de direitos de intervenção no processo penal. Notadamente, as vítimas podem, hoje, obter, do juiz criminal, a fixação de indenizações mínimas, seja a título de dano material, seja a título de dano moral. Imperioso, todavia, que haja uma atuação técnica e combativa dos advogados criminais das vítimas, em harmonia com os seus advogados cíveis, na construção de critérios de fixação e de standards probatórios, para obter maior sucesso na tutela dos legítimos interesses das vítimas.
Palavras-chave: Direitos da vítima – indenização no processo penal
Abstract: This article seeks to indicate the context of the revaluation of the victim in Brazilian criminal proceedings, as well as to show that victims of crime now have a remarkable number of rights to intervene in criminal proceedings. In particular, victims can now obtain minimum compensation from the criminal judge, either for material or moral damage. It is imperative, however, that victims’ criminal lawyers act in a technical and combative manner, in harmony with their civil lawyers, to develop criteria for setting damages and standards of proof, in order to achieve greater success in protecting victims’ legitimate interests.
Keywords: Victims’ rights – compensation in criminal proceedings
Sumário: I. Introdução; II – A revalorização da vítima no sistema de justiça criminal, e suas implicações práticas. III. Considerações finais.
¹ Advogado criminalista, professor doutor de Direito Penal da Faculdade de Direito da UERJ.
² Advogado criminalista, assessor jurídico-criminal da FENASEG, professor convidado de Direito Penal no curso de pós-graduação em Direito Securitário, na UFPR. Professor de Direito Penal da ENS no curso de “Especialização de Sindicantes”. Doutorando em Direito Penal na Universidade de Buenos Aires (UBA). Pós-Graduado em Direito Penal Econômico na PUC/RJ. Possui curso de MBA de gestão em seguros na UCAM. E-mail: leonardo.mendonca@lmadv.com.br.
I – Introdução
1. Tradicionalmente, o sistema de justiça criminal tinha muito pouca consideração para com legítimos interesses da vítima de um delito. A vítima até podia participar do processo penal, na qualidade de assistente do Ministério Público, mas, seus poderes processuais eram muito restritos. Seus pronunciamentos, se não se coadunassem com os do promotor de justiça, eram até vistos com certa má vontade.
2. Além disso, viabilizar a reparação do dano sofrido pela vítima não era, em absoluto, uma prioridade para os juízes criminais, sempre preocupados especialmente com a punição do agente do crime. Para obter a reparação do dano, a vítima tinha, necessariamente, de mover um processo cível, ou esperar a obtenção de uma sentença criminal condenatória, com trânsito em julgado, e buscar a execução cível. O nosso sistema de justiça criminal vicejava à parte da justiça civil; por vezes, fazia-lhe clara oposição, pois era normal que a lei penal não desse quaisquer estímulos à reparação do dano e que decisão criminal tivesse consequências práticas que impedissem, por via reflexa, tal reparação, deixando a vítima à míngua.
3. Nos últimos tempos, esse quadro tem se alterado radicalmente. Hoje pode-se dizer que a vítima do crime adquiriu um relativo protagonismo no sistema de justiça criminal. A revalorização da vítima tem se manifestado em inúmeros pontos do sistema de justiça criminal, seja no âmbito legislativo (com a edição de muitas leis que ampliam a proteção da vítima), seja numa mudança de mentalidade dos promotores de justiça e dos juízes criminais (mais propensos, hoje em dia, a buscar compor os interesses da vítima).
4. Nesse artigo, buscar-se-á discutir precisamente essa revalorização da vítima, que aponta no sentido de que, hoje, os lesados por delitos podem legitimamente contar com uma tendência favorável à obtenção de reparação dos danos. Mais ainda, pode-se dizer que a busca pela reparação do dano à vítima passou a ser um dos pontos cardeais do sistema de justiça criminal, a tal ponto que, hoje, a esfera criminal pode ser até mais efetiva e barata, para que a vítima obtenha seu legítimo ressarcimento.
II – A revalorização da vítima no sistema de justiça criminal, e suas implicações práticas
5. Desde o início da década de 1940, quando o Código Penal e o Código de Processo Penal foram editados, muitas foram as reformas, amplas ou pontuais, a que foi submetido o arcabouço legislativo que disciplina a atuação do sistema de justiça criminal. Tradicionalmente, a reparação do dano à vítima não era um objetivo importante da justiça criminal; só se falava em reparação do dano em poucas hipóteses:
I. se apreendida coisa pertencente ao lesado, a lei dizia que tal coisa devia ser devolvida a ele, mas, apenas quando não mais interessasse à prova do processo (art. 119, CPP 1941);
II. previa-se a possibilidade de a vítima pedir o sequestro do produto do crime, ou o arresto de bens, imóveis e móveis, para garantir o ressarcimento do dano (art. 127 a 144, CPP 1941), e de que a fiança pudesse fazer frente à indenização do dano (art. 336, CP);
III. permitia-se uma tímida atenuante de pena, no caso de reparação do dano (art. 48, IV, CP 1940);
IV. impunha-se a revogação da suspensão condicional da pena, se não houvesse reparação do dano (art. 59, II, CP 1940; art. 707, II, CPP 1941); e
V. a sentença criminal condenatória transitada em julgado era título executório na área cível (art. 74, I, CP 1940; art. 63, CPP 1941), mesmo se se tratasse de sentença estrangeira (art. 7.º, CP 1940; art. 790, CPP 1941).
5. Todavia, toda a doutrina processual e também a prática dos tribunais eram no sentido de que o juiz criminal não podia fixar indenização cível. Aliás, esse sistema rígido de separação entre as instâncias civil e penal era preconizado na própria Exposição de Motivos do Código de Processo Penal, na qual se lê: o CPP “mantém a separação entre a ação penal e a ação civil ex delicto, rejeitando o instituto ambíguo da constituição de “parte civil” no processo penal. A obrigação de reparar o dano resultante do crime não é uma consequência de caráter penal, embora se torne certa quando haja sentença condenatória no juízo criminal. A invocada conveniência prática da economia de juízo não compensa o desfavor que acarretaria ao interesse da repressão a interferência de questões de caráter patrimonial no curso do processo penal” (item V). Na esteira de Virgílio Sá Pereira, a Exposição de Motivos entendia “que a reparação do dano é matéria de direito civil”, e “que a repressão sofreria, se, no crime, a pleiteássemos”, pois “abrir no processo-crime a necessária margem à ação reparadora seria ou fazer marcharem simultaneamente as duas ações no mesmo processo, o que se tornaria tumultuário, ou paralisar o processo-crime para que o cível o alcançasse no momento final de pronunciamento da sentença que aplicasse a pena e fixasse a indenização. Não creio que a repressão ganhasse com isto alguma coisa; ao contrário, perderia muito de sua prontidão e rapidez” (item V). Mais ainda: a reparação do dano não extinguia a punibilidade, nem impedia o processo penal.
6. Paulatinamente, esse entendimento foi se alterando, sempre em prol do prestígio dos interesses da vítima do crime, e em detrimento do agente do crime (mas, por vezes, não deixa de atuar em benefício do agente). De lá para cá, nesses noventa anos, muitas foram as inovações em termos de reparação do dano e de ampliação dos poderes processuais da vítima. Diversos benefícios legais, ou mesmo penas, passíveis de aplicação ao agente do crime passaram a depender, em maior ou menor medida, da reparação do dano ou mesmo constituíam reparação do dano; e a vítima passou a poder atuar muito mais amplamente no processo penal.
7. Mantidas todas as franquias dadas à vítima e à reparação do dano (cf. pontos indicados no item 5, supra), houve diversas alterações legislativas que ampliaram ainda mais o espectro de atuação da vítima; vejamos alguns exemplos:
I. em 1984, criou-se o chamado arrependimento posterior, que, na hipótese de crime patrimonial sem violência nem grave ameaça, consiste na possibilidade de uma diminuição de até dois terços de pena, se o agente repara integralmente o dano, antes do início do processo (i.e., na fase de inquérito policial) (art. 16, CP);
II. ainda em 1984, a concessão do livramento condicional passou a depender da reparação do dano (art. 83, IV, CP);
III. em 1995, criou-se a suspensão condicional do processo (art. 89, L. 9.099/1995), aplicável a crimes de estelionato, que prevê, como condição, a reparação do dano;
IV. também em 1995, criaram-se os juizados especiais criminais, que têm, como um dos princípios reitores, a conciliação, prevendo, se as partes chegam a uma composição civil, extinção da punibilidade em crimes de menor potencial ofensivo (v.g., no âmbito dos crimes cometidos contra seguradoras, o delito de comunicação falsa de crime, art. 340, CP);
V. em 1996, criou-se nova modalidade, mais benéfica ao agente do crime, de sursis (o chamado sursis especial), se ele reparou o dano (art. 78, § 2.º, CP);
VI. em 1998, criou-se uma pena nova, sob o nome de prestação pecuniária, que “consiste no pagamento em dinheiro à vítima, a seus dependentes ou a entidade pública ou privada com destinação social, de importância fixada pelo juiz, não inferior a 1 (um) salário-mínimo nem superior a 360 (trezentos e sessenta) salários-mínimos”, dizendo-se ainda que “o valor pago será deduzido do montante de eventual condenação em ação de reparação civil, se coincidentes os beneficiários” (art. 45, § 1.°, CP);
VII. em 2003, passou-se a prever que, em crime contra a administração pública, a progressão de regime prisional depende de reparação do dano (art. 33, § 4.°, CP);
VIII. em 2011, passou-se a permitir que a vítima, habilitada como assistente, possa pedir prisão preventiva (art. 311, CPP), e a impor, como medida cautelar, que o agente do crime não faça contato e fique distante de pessoa determinada, incluindo, claro, a vítima do crime (art. 319, III, CPP);
IX. em 2013, criou-se a colaboração premiada, em cujo âmbito um dos resultados buscados deve ser, sempre que possível, a recuperação total ou parcial do produto das infrações penais praticadas pela organização criminosa (art. 4.º, IV. L. 12.850/2013);
X. em 2019, adveio o acordo de não persecução penal, cabível para crimes sem violência nem grave ameaça, com pena mínima inferior a quatro anos, sendo as condições mais importantes a reparação do dano ou restituição da coisa à vítima e o pagamento de prestação pecuniária à vítima (art. 28-A, I e III, CPP);
XI. ainda em 2019, passou-se a impor que, no caso de arquivamento do inquérito policial, a vítima seja intimada, podendo recorrer para a instância superior do Ministério Público (art. 28 e § 1.°, CPP);
XII. ainda em 2019, prevê-se que, na hipótese de leilão antecipado dos bens apreendidos, o dinheiro apurado caberá, em primeiro lugar, à vítima (ou ao terceiro de boa-fé), e apenas o saldo é que caberá aso cofres públicos (art. 133, CPP);
XIII. por fim, ainda em 2019, o estelionato passa a ser crime cujo processo exige representação criminal (art. 171, § 5.°, CP), o que permite que as partes (vítima e agente do crime) possam se compor, com amplos efeitos impeditivos do processo penal;
XIV. em 2021, nos crimes de estelionato, a lei processual penal transfere a competência para o local de domicílio da vítima (art. 70, § 4.º, CPP), o que evidentemente a beneficia;
XV. ainda em 2021, cria-se um delito de fraude eletrônica, que, punido com pena de 4 a 8 anos, existe se a fraude é “cometida com a utilização de informações fornecidas pela vítima ou por terceiro induzido a erro por meio de redes sociais, contatos telefônicos ou envio de correio eletrônico fraudulento, ou por qualquer outro meio fraudulento análogo” (art. 171, § 2.°-A, CP);
XVI. E, por fim, ainda em 2021, prevê-se que, especialmente nos processos de crimes contra a dignidade sexual (art. 400-A, CPP) e de competência do Júri (crimes dolosos contra a vida, cf. art. 474-A, CP), todos os sujeitos processuais devem respeitar a dignidade moral da vítima.
8. Essas alterações ocorridas nessas décadas mostram, com clareza meridiana, uma mudança profunda de mentalidade dos profissionais do direito quanto à dignidade e à importância dos interesses da vítima no processo penal. É uma verdadeira redescoberta da vítima no processo penal. Tudo isso, evidentemente, realça a importância dos interesses da vítima, estimula que o autor do crime procure com ela se compor, e mostra, aos profissionais do direito (sejam eles juízes, promotores de justiça ou advogados do réu), que a vítima merece ser ouvida e ter seus pleitos considerados, mesmo na área criminal.
9. Mas, dentro de todas essas alterações de grande alcance, a maior revolução jurídica operada em termos de possibilidades de atuação e de resultados para a vítima no processo penal parece ter sido a possibilidade, prevista desde 2008, no art. 387, IV, CPP, de que o juiz, ao prolatar sentença condenatória, “fix[e] valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração, considerando os prejuízos sofridos pelo ofendido”. Essa alteração constituiu uma transformação radical no tradicional sistema de separação entre os juízos criminal e cível, e permite, amplamente, que a vítima possa obter, diretamente do juiz criminal, um provimento que lhe garanta uma indenização cível mínima.
10. A obtenção de uma indenização cível mínima na área criminal, embora possa ainda ser objeto de certa resistência por parte dos juízes criminais e tenha alguns pontos de atenção, tem inúmeras vantagens. Dentre os pontos de atenção, está, em primeiro lugar, o fato de que o processo criminal não interrompe, nem suspende a prescrição cível; portanto, se o processo criminal não chega a bom termo (i.e., condenação com imposição de dever de indenizar), o lesado pode ter dificuldade de cobrar na área cível; em segundo lugar, como a pretensão de ressarcimento civil é subsidiária à condenação criminal, se o agente é absolvido (ou se ocorrer prescrição da pretensão punitiva ou outra causa de extinção da punibilidade durante o processo penal), a indenização cível, ainda que instituída pelo juiz criminal, fica prejudicada.
11. Dentre, todavia, as várias vantagens, verifica-se que, como a fixação ocorre na própria sentença criminal, há uma clara economia processual. Em segundo lugar, estabelecida na área criminal a responsabilidade do agente, não mais se pode discutir, no cível, a responsabilidade civil (art. 91, I, CP, e art. 935, CC). Em terceiro lugar, no processo penal, normalmente não são cobradas custas para a realização de medidas cautelares de sequestro e arresto de bens, nem para que a sentença condenatória aprecie a possibilidade de impor indenização mínima. Por fim, também não há que se falar em honorários de sucumbência, se o agente é absolvido. Esses dois últimos pontos indicam, claramente, uma maior economia financeira em buscar-se o ressarcimento cível pela via criminal.
12. A teleologia da lei foi conferir liquidez parcial à sentença penal que fixa indenização cível mínima, viabilizando sua execução civil pelo valor mínimo reconhecido naquela decisão de mérito, sem prejuízo da simultânea liquidação para apuração do dano efetivamente sofrido, conforme preceitua o art. 63, parágrafo único, também incluído no Código de Processual Penal em 2008: “Art. 63. Transitada em julgado a sentença condenatória, poderão promover-lhe a execução, no juízo cível, para o efeito da reparação do dano, o ofendido, seu representante legal ou seus herdeiros. Parágrafo único. Transitada em julgado a sentença condenatória, a execução poderá ser efetuada pelo valor fixado nos termos do inciso IV do caput do art. 387 deste Código sem prejuízo da liquidação para a apuração do dano efetivamente sofrido.” (texto grifado).
13. É claro que esse tipo de ampliação de atribuições do juiz criminal gera algum tipo de resistência corporativista. Muitos autores dizem que alterações legais revolucionária levam, em média, dez anos para serem assimiladas pelos antigos profissionais do direito, que tendem a manter-se trabalhando de acordo com os usos e costumes antigos, e para que novos profissionais do direito, já formados sob a égide da nova lei, se estabeleçam. Passados mais de 15 anos da inovação legislativa que permite que o juiz criminal fixe indenização cível, pode-se dizer que hoje há uma normalidade institucional na visão de que o processo penal pode – e até deve – servir a atender aos legítimos interesses da vítima. Esse trabalho diuturno de buscar reparação do dano nos processos penais tem sido um mister incessante de muitos advogados de vítimas de delito, inclusive dos autores deste artigo, que defendem há décadas, diversas seguradoras vítimas de fraudes securitárias, com dificuldades, mas também com êxitos expressivos e gratificantes.
14. Nesse trabalho, tem-se buscado sempre a obtenção cautelar de sequestro do produto do crime ou de arresto de bens do agente do delito (art. 125 a 144 CP) e providências constritivas de caráter financeiro (quebras de sigilos fiscais, bancários etc.), para localizar e tornar indisponíveis bens de fraudadores, como forma de garantir a efetividade do provimento final, de indenização para a vítima (art. 387, IV, CPP). Quer-se buscar que o processo penal não seja apenas um fator de custo para as seguradoras, mas também um instrumento de recuperação de ativos.
15. Nem sempre o Ministério Público se preocupa com a questão da busca de meios para reparação do dano às vítimas, especialmente quando se trata de empresas. Daí a importância da atuação da vítima, constituída como assistente do parquet (art. 268 CPP), e representada por escritórios de advocacia criminal, para dar suporte aos Promotores de Justiça, normalmente assoberbados por grande quantidade de processos sob sua atribuição funcional, e desconhecedores da sistemática específica dos contratos de seguros.
16. A busca por efetividade da reparação do dano civil por meio do processo penal exige, todavia, alguns cuidados. É indispensável, primeiramente, que o pedido de que o juiz criminal profira uma condenação a uma indenização mínima esteja expressamente consignado na denúncia.³ Essa é uma questão indene de dúvidas.
17. Mas, não é só: há pontos, que, por muito tempo, ficaram indefinidos. Há muito discute-se se a denúncia deve trazer o valor específico que se pleiteia a título de indenização mínima e, ainda, se deve haver, no processo penal, uma instrução probatória específica, relativamente à pretensão de indenização mínima, que permita que o agente do crime discuta o dever de indenizar e o quantum pleiteado.
18. A Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça vinha exigindo que houvesse, no processo penal, “além de pedido expresso, a indicação de valor e instrução probatória específica, de modo a possibilitar ao réu o direito de defesa com a comprovação de existência de prejuízo a ser reparada ou a indicação de quantum diverso”. ⁴ Já a Sexta Turma do STJ adotava posicionamento diverso, dispensando essas formalidades, reputando “desnecessárias a indicação do valor e a instrução probatória específica”, considerando essencial “apenas pedido expresso na inicial”. ⁵
19. Há, ao que parece, uma tendência de harmonização dessa divergência entre a Quinta e a Sexta Turma do STJ. Em 22.08.2023, a Quinta Turma, sob a relatoria do Min. Joel Ilan Paciornik, reviu a jurisprudência anterior da Quinta Turma, alinhando-se à Sexta Turma, no sentido de que só seria necessário incluir o pedido concernente ao valor mínimo, para reparação do dano moral na exordial acusatória, com a dispensa de instrução probatória específica (AgRg no REsp 2.029.732/MS). O julgamento não tratou expressamente da obrigatoriedade, na denúncia, de indicar a importância a ser determinada pelo Juiz criminal. ⁶ Esse julgado é especialmente interessante não apenas em virtude de, ao menos momentaneamente, unificar a jurisprudência das Turmas do STJ, mas também porque tratava de fixação de indenização por dano moral, e não de dano material.
20. Posteriormente (em 08.11.2023), ainda em um caso de fixação, pelo juiz criminal, de indenização por dano moral, a Terceira Seção do STJ, ao julgar o REsp 1.986.672/SC⁷ , relator o Min. Ribeiro Dantas, assentou a tese de que, nos casos de dano moral presumido, deve haver, além do pedido expresso, a indicação, na denúncia, do valor pretendido, mas, dispensou instrução probatória específica. Esse pedido expresso na denúncia, com a indicação do valor pretendido, deve ser feito nos moldes do art. 3.º do CPP⁸ c/c art. 292, V, do CPC⁹, a fim de se evitar violação ao princípio da congruência e aos postulados constitucionais do contraditório, da ampla defesa e do sistema acusatório.
21. É primordial que se busque incluir também a fixação de indenizações por danos morais. Como dizia Helio Tornaghi, um dos mais ilustres processualistas penais, “a mera reintegração do lesado na posse da coisa não cobre toda a lesão, pois não paga a privação sofrida, embora temporária. Há mister ressarcir o dano por inteiro. O ressarcimento é o pagamento do dano patrimonial sofrido, de todo o dano, isto é, do prejuízo emergente e do lucro cessante, do principal e dos acréscimos que lhe adviriam com o tempo e com o emprego da coisa. Quando, porém, o dano não for ressarcível por não poder ser estimado em dinheiro, por não ter caráter patrimonial, há mister uma compensação, que sirva para repará-lo, para confortar a dor, para contrabalançá-la” (Instituições de Processo Penal, vol. 2, Ed. Saraiva, São Paulo, 1977, p. 380).
22. Os julgados posteriores das Turmas criminais do STJ têm se mantido fiéis ao entendimento manifestado pela Terceira Seção daquela augusta Corte. Eis o entendimento recente de ambas as Turmas:
“PENAL E PROCESSO PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. PECULATO. CONDENAÇÃO CONFIRMADA PELO TRIBUNAL REGIONAL COMPARTILHAMENTO DE PROVAS (PROVA EMPRESTADA). POSSIBILIDADE. INSUFICIÊNCIA DE PROVAS. PLEITO DE ABSOLVIÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA 7/STJ. DOSIMETRIA DA PENA. AUSÊNCIA DE VÍCIOS. FIXAÇÃO DA PENA DE MULTA. PROPORCIONALIDADE RESPEITADA. REPARAÇÃO DO DANO MATERIAL. PEDIDO EXPRESSO NA DENÚNCIA. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO. […]
9. Por fim, a fixação de multa para reparação dos danos causados às vítimas da infração penal, além de pedido expresso, pressupõe a indicação de valor e prova suficiente a sustentá-lo, possibilitando ao réu o direito de defesa com indicação de quantum diverso ou mesmo comprovação de inexistência de prejuízo material ou moral a ser reparado.
10. No caso em exame, houve pedido expresso do Ministério Público na denúncia, nos termos do art. 387, inciso IV, do CPP, com a indicação do valor pretendido, garantindo, desde o começo da etapa judicial, a ampla defesa e o contraditório para todos os envolvidos no sentido de impugnar o valor indiciado ou, ainda, afastar o pleito reparatório, não havendo, portanto, ilegalidade a ser reparada.
11. Com efeito, não há se falar em ilegalidade na fundamentação adotada pela instância ordinária, a qual está em consonância com a jurisprudência desta Corte.” (texto grifado) (AgRg no REsp 2.059.757/SC, Ministro-Relator RIBEIRO DANTAS, Quinta Turma, julgado em 27/11/23).
“AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. ROUBO MAJORADO. REPARAÇÃO CIVIL. INDENIZAÇÃO. NECESSIDADE DE INDICAÇÃO EXPRESSA DE VALOR MÍNIMO NA DENÚNCIA. JURISPRUDÊNCIA RECENTEMENTE CONSOLIDADA NA TERCEIRA SEÇÃO. RESP N. 1.986.672/SC. AGRAVO REGIMENTAL NÃO PROVIDO.
1. Entendia a Sexta Turma deste Colegiado que os requisitos de fixação do valor mínimo para a indenização prevista no art. 387, IV, do CPP exigiam, tão somente, pedido expresso na denúncia, pois prescindíveis a indicação de valor e a instrução probatória específica. A satisfação dos referidos requisitos não importaria em violação do princípio do devido processo legal e do contraditório, pois facultou-se à defesa, desde o início da ação penal, contrapor-se ao pleito ministerial, nos termos do art. 387, V, do CPP.
2. Recentemente, a Terceira Seção desta Corte, no julgamento do REsp n. 1.986.672/SC, Rel. Min. Ribeiro Dantas, DJe 21/11/2023, firmou a tese de que, “em situações envolvendo dano moral presumido, a definição de um valor mínimo para a reparação de danos: (I) não exige prova para ser reconhecida, tornando desnecessária uma instrução específica com esse propósito, todavia, (II) requer um pedido expresso e (III) a indicação do valor pretendido pela acusação na denúncia”.
3. No caso, muito embora a recorrente haja ingressado com pedido de habilitação como assistente de acusação, em que constou pleito expresso de reparação do dano no valor mínimo mencionado, o pleito não foi formulado na exordial acusatória.
4. Agravo regimental não provido.” (destacou-se) (AgRg nos EDcl no Ag em REsp 1797301/SP, Ministro-Relator ROGERIO SCHIETTI CRUZ, Sexta Turma, julgado em 12/03/24).
23. No que toca à realidade das fraudes contra seguradoras, o dano material às companhias é de simples constatação. Basta apresentar, durante a persecução criminal, os comprovantes de pagamentos provenientes das fraudes (o que pode inclusive incluir gastos com a apuração dos fatos, tais como sindicantes externos etc.), permitindo, assim, ao Ministério Público, quando do oferecimento de denúncia, requerer expressamente a reparação do dano material, com a indicação do valor almejado, desnecessária a instrução probatória específica.
24. Quanto aos danos morais, essa perspectiva se torna mais complexa, por conta da dificuldade de se provar os prejuízos extrapatrimoniais que atingem a honra objetiva¹⁰ das pessoas jurídicas. Mas, não há dúvida de que a pessoa jurídica pode sofrer dano moral, como estatui a Súmula 227 do STJ e, por isso, à vista da jurisprudência do STJ, pode e deve haver o requerimento de fixação de indenização por dano.
25. Sob esse prisma, a experiência e o conhecimento dos advogados civilistas (e dos colegas dos departamentos jurídicos das companhias seguradoras) revelam-se imprescindíveis, atuando em conjunto com os profissionais da área criminal na criação de critérios que possam certificar os abalos morais e indicar o quantum debeatur, resultantes de danos extrapatrimoniais por fraudes contra os seguros. Fundamental demonstrar como afetariam o business das companhias, na captação de clientes, e sua imagem, credibilidade e reputação perante a massa mutualista (e a sociedade como um todo), que podem desconfiar da segurança da operação securitária. É notório que as fraudes a seguros não acometem apenas as companhias seguradoras, causando malefícios incalculáveis à coletividade de um modo geral. Não só afligem os segurados, obrigados a arcar com a elevação dos valores dos prêmios; também alcançam o restante da população, que acaba ficando alijada de contratar seguros, devido ao encarecimento de preços e, assim, deixando de ser agraciada com os seus benefícios.
26. Importante exemplo para medir impactos à honra objetiva de empresas e definir critério para o arbitramento de indenização foi dado pelo Ministro Messod Azulay Neto em seu relatório, no AgRg no Ag em REsp 2.267.828/MG (julg. em 17/10/23): “Por outro lado, é possível que determinados crimes afetem a imagem e a honra de empresas. Seria, por exemplo, o caso de consumidores que param de frequentar determinado estabelecimento por razões de segurança.” (grifamos). Ainda em relação aos parâmetros para a fixação do quantum indenizatório, cite-se interessante julgado do TJSC, embasado nos ditames do STJ: “Para a fixação do quantum indenizatório, devem ser observados alguns critérios, tais como a situação econômico-financeira e social das partes litigantes, a intensidade do sofrimento impingido ao ofendido, o dolo ou grau da culpa do responsável, tudo para não ensejar um enriquecimento sem causa ou insatisfação de um, nem a impunidade ou a ruína do outro” (Ap. Cív. n.º 0302088-86.2015.8.24.0027, Des. Rel. Marcus Tulio Sartorato, 3.ª Câmara de Direito Civil, j. 21.11.17).
³ Veja-se, p.ex., o seguinte aresto: “Nos termos do art. 387, IV, do CPP, o juiz poderá fixar valor mínimo para a reparação dos danos causados pela infração, considerando os prejuízos sofridos pelo ofendido, desde que o crime deverá ter ocorrido após a entrada em vigor da Lei n.º 11.719, de 20/06/2008, e o MPF tenha pedido expressamente a reparação. Na hipótese, atendidos tais requisitos, deve ser mantida a fixação, no entanto, com a redução do valor mínimo para 3 (três) salários-mínimos, sem prejuízo da liquidação para a apuração do dano efetivamente sofrido em ação de execução ex delicto futura. 8. Apelação criminal parcialmente provida” (TRF-5, Ap. Crim. 452.829/SE, 1ª Turma, Desembargador relator Élio Wanderley de Siqueira Filho, 10/07/18, v.u.).
⁴ STJ, 5.ª T., AgRg no REsp 1.724.625/RS, Min. rel. Ribeiro Dantas, julg. 21/06/18, DJe 28/06/18. Em precedente semelhante, veja-se AgRg no REsp 1.483.846/DF, Min. rel. Reynaldo Soares da Fonseca, julg. 23/2/16, DJe 29/02/16: “Na hipótese, embora o Ministério Público tenha pleiteado expressamente na denúncia a fixação de valor para a reparação do dano, nos termos do art. 387, inc. IV, do CPP, não houve a instrução específica com a indicação de valores e provas suficientes a sustentá-lo, proporcionando a ré a possibilidade de se defender e produzir contraprova.”
⁵ STJ, 6.ª T., AgRg no HC n. 725.075/MS, Min. rel. Antonio Saldanha Palheiro, DJe 25/5/23. No mesmo sentido: STJ, 6.ª T., AgRg no REsp 1.940.163/TO, Min. rel. Laurita Vaz, julg. 22/2/22, DJe de 3/3/22.
⁶ “PROCESSO PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. CONDENAÇÃO PELO CRIME DE ROUBO MAJORADO. FIXAÇÃO DE INDENIZAÇÃO MÍNIMA POR DANOS MORAIS. ART. 387, IV, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL – CPP. INSTRUÇÃO PROBATÓRIA ESPECÍFICA. DIVERGÊNCIA ENTRE AS TURMAS QUE COMPÕEM ESTA SEÇÃO CRIMINAL. REVISÃO DE ENTENDIMENTO DA QUINTA TURMA PARA ADOÇÃO DO POSICIONAMENTO DA SEXTA TURMA. INEXIGÊNCIA DE INSTRUÇÃO PARA FINS DE SUA CONSTATAÇÃO. LIMITE DE PRODUÇÃO DE PROVAS EXTRAÍDO DO CONTEXTO CRIMINOSO. NÃO ALARGAMENTO, CARACTERÍSTICO DO PROCESSO CIVIL. VALOR MÍNIMO, NÃO EXAURIENTE. POSSIBILIDADE DE LIQUIDAÇÃO DA SENTENÇA. CASO CONCRETO. ROUBO MAJORADO. OFENDIDO QUE TEVE ARMA NO PESCOÇO. TRAUMA PSICOLÓGICO FACILMENTE IDENTIFICADO NOS AUTOS. FIXADA QUANTIA INDENIZATÓRIA. MANUTENÇÃO DO ACÓRDÃO RECORRIDO. AGRAVO REGIMENTAL PROVIDO. RECURSO ESPECIAL DESPROVIDO. […] 3. Passa-se, assim, a adotar o posicionamento da Sexta Turma desta Corte, que não exige instrução probatória acerca do dano psíquico, do grau de sofrimento da vítima, nos termos do art. 387, IV, do CPP, bastando que conste o pedido expresso na inicial acusatória, garantia bastante ao exercício do contraditório e da ampla defesa.”
⁷ “PENAL. RECURSO ESPECIAL. CRIME DE ESTELIONATO. FIXAÇÃO DE VALOR INDENIZATÓRIO MÍNIMO. INCLUSÃO DO NOME DA VÍTIMA EM CADASTROS DE INADIMPLENTES. DANO MORAL IN RE IPSA. DESNECESSIDADE DE INSTRUÇÃO PROBATÓRIA ESPECÍFICA, NO CASO CONCRETO. EXIGÊNCIA, PORÉM, DE PEDIDO EXPRESSO E VALOR INDICADO NA DENÚNCIA. AUSÊNCIA DE INDICAÇÃO, NA PEÇA ACUSATÓRIA, DA QUANTIA PRETENDIDA PARA A COMPENSAÇÃO DA VÍTIMA. RECURSO ESPECIAL A QUE SE DÁ PROVIMENTO, PARA EXCLUIR A FIXAÇÃO DO VALOR INDENIZATÓRIO MÍNIMO.”
⁸ “Art. 3.º A lei processual penal admitirá interpretação extensiva e aplicação analógica, bem como o suplemento dos princípios gerais de direito.
⁹ “Art. 292. O valor da causa constará da petição inicial ou da reconvenção e será: V – na ação indenizatória, inclusive a fundada em dano moral, o valor pretendido;”.
¹⁰ CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 15.ª ed., Barueri: Atlas, 2021. p. 148-150.
III – Conclusão
27. É preciso investir, com técnica e combatividade, na busca de que o processo penal possa não só discutir a ocorrência, ou não, do crime e da culpabilidade do agente, mas, também, na medida do possível, que atente para as suas consequências, inclusive cíveis, relativas aos interesses da vítima do delito.
28. A profunda revolução ofertada pela possibilidade de que o juiz criminal fixe indenização mínima, seja quanto a danos materiais, seja quanto a danos morais, está no âmbito de uma grande revalorização do papel e dos interesses da vítima no processo penal. De um papel ancilar, a vítima tem passado a um dos papéis de protagonismo no processo penal.
28. As decisões do STJ, que indicam a necessidade de um pedido expresso (com estimativa do valor pretendido), trouxeram segurança jurídica, seja para o réu, seja para a vítima. Muitos promotores de justiça não incluem tais pedidos em suas acusações, nem, muito menos, indicam valores específicos, ou pleiteiam que a instrução probatória penal inclua a questão do valor do dano ex delicto. Nesse sentido, a atuação das vítimas, através de seus advogados, é fundamental. Ademais, a exigência de condenação criminal, que impõe elevado standard probatório, demandará que a prova relativa ao dano, material e moral, seja muito bem-feita pelas vítimas que busquem pleitear um provimento cível do juiz penal.
29. O ideal, com toda a certeza, é que a atividade da vítima no processo penal esteja em perfeita harmonia com a atuação cível do segmento securitário, ampliando as chances de reparação do dano e podendo ministrar reciprocamente provas para aumentar a chances de sucesso em ambas as esferas. É profundamente recomendável que as seguradoras atuem diligentemente no sentido de buscar, no processo penal, a fixação de indenizações mínimas por danos materiais e morais, ministrando a seus advogados criminais todos os elementos para que possam ser requeridas medidas de sequestro e arresto, e para que as denúncias possam indicar, com clareza, os valores pretendidos, com os respectivos critérios jurídicos e fáticos de fixação.