Resumo: O artigo tem por objetivo analisar o recente julgamento do AREsp 2.457.471/SP como marco na consolidação de um modelo garantista no reconhecimento de pessoas. Parte-se da premissa de que o reconhecimento de pessoas, quando realizado sem a observância estrita das garantias legais e constitucionais, compromete a lisura do processo e conduz a condenações injustas. O texto também cita brevemente a evolução jurisprudencial sobre o tema, com destaque para os julgados do HC 598.886/SC (STJ), HC 712.781/RJ (STJ), AREsp 2.123.334/MG (STJ), HC 172.606/SP (STF) e HC 206.846/SP (STF).
Palavras-chave: Reconhecimento pessoal. Processo penal. Prova. Garantias constitucionais. Due process.
Abstract: This article aims to analyze the recent judgment of AREsp 2.457.471/SP as a landmark in the consolidation of a rights-based model for eyewitness identification in criminal proceedings. It starts from the premise that such identifications, when conducted without strict adherence to legal and constitutional safeguards, compromise the integrity of the process and may lead to wrongful convictions. The text also briefly outlines the jurisprudential developments on the matter, with emphasis on the rulings in HC 598,886/SC (STJ), HC 712.781/RJ (STJ), AREsp 2.123.334/MG (STJ), HC 172.606/SP (STF), and HC 206.846/SP (STF).
Keywords: Eyewitness identification. Criminal procedure. Evidence. Constitutional guarantees. Due process.
Sumário: I. Introdução; II. O reconhecimento pessoal como meio de prova: aspectos teóricos e legais; III. O caso do AREsp 2.457.741: breve relatório e fundamentos da decisão; IV. O reconhecimento pessoal e o devido processo legal: a jurisprudência dos tribunais superiores; V. (i)legalidade de reconhecimentos pessoais defeituosos e suas consequências no Estado Democrático de Direito; VI. O julgamento do AREsp 2.457.741 como paradigma garantista; VII – Considerações finais.
I – Introdução
O reconhecimento de pessoas, embora tradicionalmente aceito como meio de prova, tem sido alvo de severas críticas nos últimos anos. A ciência empírica demonstra que esse procedimento, quando conduzido de maneira equivocada, é uma das principais causas de erros judiciários. Nesse contexto, a jurisprudência brasileira tem evoluído para coibir práticas reconhecidamente violadoras das garantias processuais, principalmente quando o reconhecimento é o único elemento probatório utilizado para a condenação. O julgamento do AREsp 2.457.741, realizado na Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, destaca-se como expoente dessa evolução, reafirmando a necessidade de estrito cumprimento das normas legais que regem o procedimento.
O enfocado ensaio busca defender a legitimidade e a importância do julgamento proferido no referido agravo, demonstrando que a decisão reflete não apenas o respeito à legislação vigente, mas, a adesão a um modelo de processo penal que privilegia os direitos fundamentais.
II – O reconhecimento pessoal como meio de prova: aspectos teóricos e legais
O reconhecimento pessoal encontra previsão no artigo 226 do Código de Processo Penal, que estabelece um procedimento minucioso e formal. A norma exige que a pessoa que afirmar ter visto o autor da infração descreva previamente suas características, sendo, em seguida, colocado ao lado de outras com aspectos semelhantes:
“Art. 226. Quando houver necessidade de fazer-se o reconhecimento de pessoa, proceder-se-á pela seguinte forma:
I – a pessoa que tiver de fazer o reconhecimento será convidada a
descrever a pessoa que deva ser reconhecida;
Il – a pessoa, cujo reconhecimento se pretender, será colocada, se
possível, ao lado de outras que com ela tiverem qualquer
semelhança, convidando-se quem tiver de fazer o reconhecimento
a apontá-la;
[…]
IV – do ato de reconhecimento lavrar-se-á auto pormenorizado,
subscrito pela autoridade, pela pessoa chamada para proceder ao reconhecimento e por duas testemunhas presenciais.” (grifei).
A previsão tem como desiderato reduzir os riscos de indução e de reconhecimentos equivocados.
Apesar disso, é comum, na prática, que essas etapas sejam negligenciadas, seja por desconhecimento, seja por conveniência ou pressa nas investigações. Tal desprezo à legalidade compromete não apenas a validade da prova, mas, a confiabilidade do processo como um todo. Em face disso, o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça passaram a firmar entendimento de que o descumprimento das formalidades legais pode implicar nulidade do reconhecimento, especialmente quando este é a única prova da autoria delitiva.
III – O caso do AREsp 2.457.741: breve relatório e fundamentos da decisão
No AREsp 2.457.741, relatado pelo Ministro Rogerio Schietti Cruz, o STJ enfrentou situação em que o reconhecimento do acusado foi realizado sem a observância das formalidades legais, e constituiu o único elemento de prova da autoria delitiva. A decisão da Quinta Turma do Tribunal da Cidadania entendeu pela ilegalidade do reconhecimento e determinou a absolvição do acusado pela prática dos crimes de roubo e extorsão, por insuficiência de provas.
O voto do relator enfatizou que o artigo 226 do CPP não é mera recomendação, mas imposição legal que deve ser seguida sob pena de nulidade. Destacou ainda que, em se tratando de reconhecimento pessoal, a memória humana é falível, e o processo penal deve preservar a presunção de inocência (art. 5º, LVII, da Constituição da República). Assim, não se pode admitir condenação baseada exclusivamente em reconhecimento feito de forma irregular.
Como ressaltado na decisão do AREsp 2.457.741, com a finalidade de minimizar erros judiciários derivados de reconhecimentos equivocados, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) baixou a Resolução n. 484/22, a qual incorporou os avanços científicos e jurisprudenciais sobre o tema e estabeleceu “diretrizes para a realização do reconhecimento de pessoas em procedimentos e processos criminais e sua avaliação no âmbito do Poder Judiciário” (art. 1º).
IV – O reconhecimento pessoal e o devido processo legal: a jurisprudência dos tribunais superiores
A decisão no AREsp 2.457.741 está em sintonia com diversos precedentes dos tribunais superiores, por meio dos quais se passou a exigir o rigoroso cumprimento das normativas legais para a validade do reconhecimento.
- HC 598.886/SC
Neste habeas corpus, sob a relatoria do Ministro Rogerio Schietti Cruz, a Sexta Turma do STJ reafirmou que o reconhecimento pessoal realizado sem a descrição prévia e sem o cumprimento do procedimento legal deve ser considerado viciado. A decisão destacou que, se a prova for o único elemento a sustentar a acusação, a condenação é manifestamente ilegal. A Corte alertou para os perigos da prova subjetiva, principalmente quando obtida em ambiente de “pressão de terceiros”.
- HC 712.781/RJ
O HC 712.781/RJ, relatado pelo Rogerio Schietti Cruz, é paradigmático ao reforçar que o procedimento previsto no art. 226 do CPP deve ser cumprido integralmente. Essa decisão da Sexta Turma do STJ reconheceu que, além de não haver descrição prévia, não se formou um grupo de pessoas semelhantes ao lado do reconhecido. Tais falhas comprometeram de forma incontornável a validade da prova, ensejando a concessão da ordem ao paciente.
- AREsp 2.123.334/MG
Neste agravo, sob a relatoria do Ministro Ribeiro Dantas, a Terceira Seção do STJ voltou a enfatizar que a inobservância das formalidades do art. 226 do CPP torna a prova imprestável para fins condenatórios, especialmente quando desacompanhada de outros elementos. O acórdão alertou que não se trata de formalismo excessivo, mas, sim, de garantia contra erros judiciais, inclusive com base em estudos de psicologia do testemunho.
- HC 172.606/SP
A decisão de nossa Corte Suprema nesse habeas corpus teve como base os mesmos fundamentos garantistas. O Ministro-Relator Alexandre de Morais absolveu monocraticamente réu, em razão de a condenação ter sido lastrada somente no reconhecimento fotográfico efetuado na fase policial. Considerou, portanto, que o reconhecimento informal, sem observância do devido processo legal, não possui força probatória suficiente para ensejar condenação. Enfatizou-se que é dever do Estado assegurar um processo justo, e que a presunção de inocência deve prevalecer na dúvida.
- HC 206.846/SP
Por fim, o HC 206.846/SP, de relatoria do Ministro Gilmar Mendes, consolidou o entendimento de que a ausência de descrição prévia do agente e a realização do reconhecimento sem os cuidados legais tornam nula a prova produzida. A Segunda Turma do Pretório Excelso reafirmou que não se pode admitir uma condenação com base em elementos probatórios produzidos em manifesta afronta à legalidade e à Carta Magna.
V – A (i)legalidade de reconhecimentos pessoais defeituosos e suas consequências no Estado Democrático de Direito
A insistência em utilizar reconhecimentos falhos como prova condenatória compromete os pilares do Estado Democrático de Direito. A jurisprudência tolerante com reconhecimentos informais abre espaço para condenações lastreadas em prova ilícita ou imprestável, em violação direta ao art. 5º, incisos LIV e LV da Lei Maior.
O processo penal brasileiro, fincado nos princípios da ampla defesa, do contraditório e da presunção de inocência, não pode admitir condenações baseadas em atos ilegais ou arbitrários. Notadamente o reconhecimento de pessoas demanda extrema cautela, porquanto é sabidamente suscetível a influências externas, memória imprecisa e sugestionamento policial.
O descumprimento do artigo 226 do CPP deve ser interpretado como nulidade absoluta, e não relativa, porque atinge a essência do devido processo legal. Permitir que reconhecimentos ilegais produzam efeitos condenatórios é fomentar a insegurança jurídica, legitimar o arbítrio e perpetuar erros judiciais.
VI – O julgamento do AREsp 2.457.741 como paradigma garantista
A decisão proferida no AREsp 2.457.741 merece ser enaltecida por representar um ponto de inflexão na jurisprudência do STJ. O voto do Ministro Rogério Schietti Cruz demonstrou sensibilidade às garantias processuais, comprometimento com os direitos fundamentais e alinhamento com os preceitos do garantismo penal. Ao reconhecer que o reconhecimento pessoal realizado de maneira irregular não pode sustentar uma condenação, a Quinta Turma, fortalecendo os precedentes dos Tribunais Superiores, reafirmou que o processo penal não deve ser instrumento de persecução, porém, de justiça.
O acórdão é também relevante por sinalizar às instâncias inferiores que a legalidade do reconhecimento pessoal não é uma questão secundária ou acessória, contudo, essencial para a validade da prova. A postura do STJ confere à jurisprudência penal um norte de segurança e previsibilidade, e contribui para a prevenção de erros judiciais.
VII – Considerações finais
O julgamento do AREsp 2.457.741 representa uma verdadeira conquista para o direito penal garantista. Ao reafirmar a necessidade de estrita observância ao procedimento legal de reconhecimento pessoal, o STJ protegeu não apenas o acusado específico do caso, senão, o próprio Estado Democrático de Direito. O acórdão reflete um compromisso com os princípios constitucionais do processo penal, com a dignidade da pessoa humana e com a verdade real.
As normativas fixadas por esse e outros julgados analisados devem servir de guia para os Tribunais Inferiores, para o Ministério Público e para a atuação policial, de modo que a prova penal seja produzida com legalidade, legitimidade e responsabilidade. O reconhecimento pessoal, quando conduzido de forma descuidada, é um risco inaceitável à liberdade e à justiça.