Resumo: O Recurso Especial n. 2.090.901/SP, julgado, em 01/04/25, pela Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, reafirmou a inviolabilidade do domicílio como direito fundamental, vedando buscas domiciliares coletivas sem mandado judicial específico. A decisão anulou provas obtidas em varreduras indiscriminadas realizadas pela polícia em comunidade periférica, destacando que nem mesmo o Poder Judiciário pode autorizar mandados de buscas genéricos. O acórdão reforça a necessidade de fundadas razões para o ingresso em residências, conforme a jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal Federal e do próprio STJ.
Palavras-chave: Inviolabilidade do domicílio; Busca domiciliar coletiva; Fishing Expeditions; Mandado judicial; Provas ilícitas; Tráfico de drogas; Direitos fundamentais; Teoria dos frutos da árvore envenenada; Estado Democrático de Direito.
Abstract: The Special Appeal n. 2.090.901/SP, adjudicated by the Sixth Panel of the Superior Court of Justice, on April 1, 2025, reaffirms the inviolability of domicile as a fundamental right, prohibiting collective home searches without specific judicial warrants. The decision nullified evidence obtained from indiscriminate sweeps conducted by police in a peripheral community, emphasizing that not even the Judiciary can authorize generic search warrants. The ruling underscores the necessity of well-founded reasons for entering residences, in line with established jurisprudence of the Federal Supreme Court and the STJ itself.
Keywords: Inviolability of domicilie; Collective home search; Fishing Expeditions; Judicial warrant; llicit evidence; Drug trafficking; Fundamental rights; Fruit of the poisonous tree doctrine; Democratic Rule of Law.
Sumário: I. Introdução; II. Contexto fático; III. Fundamentação Jurídica; IV. Decisão do REsp n. 2.090.901/SP; e V. Considerações finais.
1 Advogado criminalista, assessor jurídico-criminal da FENASEG, professor convidado de Direito Penal no curso de pós-graduação em Direito Securitário, na UFPR. Professor de Direito Penal da ENS no curso de “Especialização de Sindicantes”. Doutorando em Direito Penal na Universidade de Buenos Aires. Pós-Graduado em Direito Penal Econômico na PUC/RJ. Possui curso de MBA de gestão em seguros na UCAM.
I – Introdução
A inviolabilidade do domicílio é um dos pilares do Estado Democrático de Direito, assegurada pelo artigo 5º, inciso XI, da Constituição da República. Esse direito fundamental protege o cidadão contra interferências arbitrárias do Estado em sua esfera privada. O Recurso Especial n. 2.090.901/SP trouxe à tona a discussão sobre a legalidade de buscas domiciliares realizadas sem mandado judicial e sem a devida individualização dos imóveis e moradores, sob a justificativa de combate ao crime permanente.
II – Contextualização fática
Durante operação policial na “Favela do Coruja”, em São Paulo/SP, 2 (dois) indivíduos, ao avistarem viatura conduzida por agentes de segurança pública, empreenderam fuga. Após perseguição, diante de “fundada razão”, condição descrita no artigo 240, § 1º, do Código de Processo Penal, os policiais detiveram os suspeitos e os abordaram pessoalmente. Com um deles, foi encontrada quantia em dinheiro supostamente oriunda do tráfico de drogas. Sem mandado judicial, os policiais ingressaram em diversas residências próximas, realizando buscas indiscriminadas. Em uma das casas, foram encontrados entorpecentes, o que embasou a denúncia e posterior condenação do acusado.
III – Fundamentação jurídica
A Carta Magna estabelece que “a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial” (artigo 5º, XI). Essa proteção visa a resguardar a privacidade e a liberdade individual contra ações estatais arbitrárias.
Nossa Corte Suprema, no julgamento do Recurso Extraordinário n. 603.616/RO (Tema 280 da repercussão geral), sob a relatoria do Ministro Gilmar Mendes, fixou a tese de que a entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, quando amparada em “fundadas razões”, devidamente justificadas a posteriori, que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito. O Tribunal da Cidadania, por sua vez, tem reiterado que a mera suspeita ou denúncia anônima não justifica o ingresso em domicílio sem mandado. Imbuído da sua missão constitucional de interpretar a legislação federal, passou, sobretudo a partir do REsp n. 1.574.681/RS, a tentar dar concretude à terminologia “fundadas razões”, por se tratar de expressão extraída pelo Pretório Excelso do artigo 240, § 1º, do Código de Processo Penal.
IV – Decisão do REsp n. 2.090.901/SP
A Sexta Turma do STJ, por unanimidade, reconheceu a ilicitude das provas obtidas nas buscas domiciliares realizadas sem mandado judicial específico e sem a devida individualização dos imóveis e moradores, verdadeiras fishing expeditions. Segundo Alexandre Morais da Rosa, “fishing expedition ou pescaria probatória é a procura especulativa, no ambiente físico ou digital, sem ‘causa provável’, alvo definido, finalidade tangível ou para além dos limites autorizados (desvio de finalidade), de elementos capazes de atribuir responsabilidade penal a alguém. [É] a prática relativamente comum de se aproveitar dos espaços de exercício de poder para subverter a lógica das garantias constitucionais, vasculhando-se a intimidade, a vida privada, enfim, violando-se direitos fundamentais, para além dos limites legais. O termo se refere à incerteza própria das expedições de pesca, em que não se sabe, antecipadamente, se haverá peixe, nem os espécimes que podem ser fisgados, muito menos a quantidade” (ROSA, Alexandre Morais da, Guia do Processo Penal Estratégico: de acordo com a Teoria dos Jogos, 1ª ed., Santa Catarina: Emais, 2021, p. 389-390) (STJ, Habeas Corpus n. 663055/MT).
O Relator do Recurso Especial n. 2.090.901/SP, Ministro Rogerio Schietti Cruz, enfatizou que nem mesmo o Poder Judiciário está autorizado a emitir mandados de busca domiciliar coletivos, sendo, portanto, ainda mais proibida a realização de buscas coletivas por iniciativa policial, sem autorização judicial:
“Logo, essa vedação a buscas domiciliares generalizadas e indiscriminadas – verdadeiras fishing expeditions –, decorrente do art. 243, I, do CPP, deve ser aplicada, também, à busca domiciliar não precedida de mandado, que não pode ser executada coletivamente.” (grifei).
Ao normatizar a expedição de mandado judicial de busca domiciliar, o artigo 243, I, do Código de Processo Penal exige que nele se indique, “o mais precisamente possível, a casa em que será realizada a diligência e o nome do respectivo proprietário ou morador; ou, no caso de busca pessoal, o nome da pessoa que terá de sofrê-la ou os sinais que a identifiquem”.
O decisum aplicou a “teoria dos frutos da árvore envenenada”, prevista no artigo 157, §1º, do Código de Processo Penal, que determina a inadmissibilidade das provas derivadas de ilícitos.
A essência da “teoria dos frutos da arvore envenenada (melhor seria dizer venenosa, tradução da fruits of the poisonous tree doctrine, de origem norte-americana), consagrada no art. 5º, LVI, de nossa Constituição da República, repudia as provas supostamente lícitas e admissíveis, obtidas, porém, a partir de outra contaminada por ilicitude original.
Por conseguinte, inadmissíveis também as provas derivadas da conduta ilícita, pois evidente o nexo causal entre uma e outra conduta, ou seja, a violação de domicílio (permeada de ilicitude) e a apreensão de eventuais substâncias entorpecentes. Não se pode, evidentemente, admitir que o aleatório subsequente, fruto do ilícito, conduza à licitude das provas produzidas pela “invasão” ilegítima (STJ, Habeas Corpus n. 663055/MT).
Consequentemente, o réu foi absolvido, pois as provas que embasaram sua condenação foram consideradas ilícitas.
V – Considerações finais
O julgamento do Recurso Especial n. 2.090.901/SP robustece a proteção constitucional da inviolabilidade do domicílio e estabelece limites claros para a atuação de agentes policiais. A decisão impede práticas abusivas, como as chamadas “varreduras” ou buscas coletivas em comunidades, sem mandado judicial e sem a devida individualização dos alvos. Assim, reafirma-se o compromisso do Poder Judiciário com a proteção dos direitos fundamentais e com o Estado Democrático de Direito.